terça-feira, 22 de março de 2011

FUNRURAL: inconstitucionalidade persiste mesmo após o advento da Lei nº 10.256/2001

* Daniel Prochalski

A Lei nº 8.540/92, mediante alteração do art. 25 da Lei nº 8.212/91, substituiu a contribuição sobre a folha de salários do produtor rural pessoa física por duas novas contribuições sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção: uma de 2% (dois por cento) e outra de 0,1% (zero vírgula um por cento), essa última para o financiamento de complementação das prestações por acidente de trabalho. Ou seja, em substituição à contribuição antes incidente sobre a folha de salários, a contribuição social do produtor rural pessoa física passou a incidir duplamente sobre o resultado da comercialização de sua produção. Esta forma de incidência foi mantida pela Lei nº 9.528/97 e, posteriormente, pela Lei nº 10.256/2001, restando o art. 25 da Lei nº 8.212/91 assim redigido:

Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de: (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001).
I - 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97).
II - 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97).


A exigência destas contribuições foi atribuída ao adquirente, ao consignatário ou à cooperativa, na condição de substitutos tributários (sujeitos passivos qualificados como terceiros responsáveis) das obrigações devidas pelos produtores rurais pessoas físicas (estes, portanto, qualificados apenas como contribuintes de fato) nos termos previstos no art. 30, III da Lei nº 8.212/91. Devido à sua qualificação como “contribuinte”, os produtores rurais têm legitimidade para propor ação judicial pretendendo a declaração de inconstitucionalidade das precitadas contribuições sociais, com amparo especialmente na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 363.852, bem como com lastro nos fundamentos jurídicos que serão expostos adiante. Tendo a declaração de inconstitucionalidade como pressuposto, as ações judiciais dos produtores rurais também podem pedir a restituição de todos os valores recolhidos indevidamente no prazo prescricional. Atualmente, o prazo prescricional permite pedir a devolução dos valores pagos indevidamente nos últimos cinco anos.

Analisando o tema a partir da Constituição Federal de 1988, o art. 195, § 8º da CF/88 reservou o resultado da comercialização da produção rural apenas e tão-somente como base de cálculo da contribuição do segurado especial, que é aquele que exerce suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes. Esta base de cálculo é plenamente justificável, uma vez que, sem a folha de salários, resta impossível a exigência das contribuições sociais sobre esta base.

O segurado especial também não pode sofrer a exigência de contribuições sociais sobre o faturamento ou o lucro, tendo em vista que juridicamente não aufere nem faturamento, nem lucro. Tal previsão se revelou coerente, uma vez que observou os princípios constitucionais da isonomia tributária (art. 150, II) e da necessidade de equidade na forma de participação no custeio da seguridade social (art. 195, V).

Com efeito, a contribuição do produtor rural pessoa física sobre a receita bruta oriunda da comercialização da sua produção rural é inconstitucional, uma vez que a CF/88 excluiu do legislador a competência para utilizar esta mesma base de cálculo para outros contribuintes, que não o segurado especial. “Não fosse assim, e se fosse permitida a utilização dessa base de cálculo para qualquer contribuinte, de nada valeria a disposição constitucional”, conforme precisa observação em brilhante parecer emitido por Humberto Ávila (Contribuição Social do Produtor Rural Pessoa Física. Lei nº 8.540/92. Incidência sobre o Resultado da Comercialização da Produção. Exame de Constitucionalidade Relativo às Regras de Competência e aos Princípios da Igualdade e da Proibição de Confisco. In Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, Dialética, n. 126, março-2006, p. 87-101).

É de se concluir, portanto, que a Lei Maior não autoriza cobrar, dos produtores rurais pessoas físicas, uma nova contribuição sobre o resultado da comercialização de sua produção, daí advindo a inconstitucionalidade das redações conferidas ao art. 25 da Lei nº 8.212/91, tanto pela Lei nº 8.540/92 como pela legislação posterior, que manteve os mesmos e incontornáveis vícios.

Ainda que se pretendesse amparar a cobrança no art. 195, I da CF/88, a inconstitucionalidade persistiria, uma vez que a substituição da contribuição sobre a folha de salários por duas novas contribuições sobre o resultado da comercialização “viola o princípio da igualdade, o dever de eqüidade, a proibição de excesso e o dever de coerência sistemática...” (conforme Humberto Ávila, mesma obra, p. 89).

Noutro giro, é preciso registrar que a contribuição dos produtores rurais pessoas físicas não tem fundamento direta e exclusivamente no art. 149 da CF/88. Como é cediço, este dispositivo, isoladamente, serve como fundamento para a instituição apenas das contribuições sociais gerais, assim entendidas aquelas que, não encontrando amparo em outros dispositivos, sejam destinadas a promover finalidades sociais não abrangidas por outras normas constitucionais. Para estas contribuições, é suficiente a instituição por lei ordinária.

Por sua vez, as contribuições sociais destinadas ao financiamento da seguridade social não são qualificadas como contribuições sociais gerais, uma vez que se destinam a atender finalidade específica, com regime também no art. 195 da CF/88. Diante dessa premissa, tais contribuições não podem ser instituídas por meio de lei ordinária sobre quaisquer bases de cálculo.

A conclusão sistemática desse tema exige lembrar que a redação do art. 195 da CF/88, à época do advento das Leis nº 8.540/92 e 9.528/97 (as quais alteraram a redação do art. 25 da Lei nº 8.212/91) apenas estabelecia, como possíveis fontes de financiamento da seguridade social, a folha de salários, o faturamento e o lucro (antes da alteração promovida pela EC 20/98). Sobre tais bases, como se sabe, era válida a utilização da lei ordinária. Caso a base de cálculo escolhida pelo legislador seja outra, aí então necessária é a aprovação por lei complementar, diante da incidência do art. 195, § 4º, em conjunto com o art. 154, I, todos da CF/88.

Com a alteração da redação do art. 195 pela Emenda Constitucional nº 20, publicada em 16/12/98, dentre outras modificações, incluiu-se a expressão “receita” de forma alternativa ao “faturamento”, como base de cálculo possível para a incidência das contribuições destinadas à seguridade social. Assim, somente a partir de 16/12/98 foi atribuída à União competência para instituir, por meio de lei ordinária, contribuições sobre a receita dos empregadores e empresas.

Antes de 16/12/1998, porém, toda e qualquer lei ordinária que utilizou a “receita” como base de cálculo padece de incontornável inconstitucionalidade, face à violação do comando estatuído no precitado art. 195, § 4º. Nesse sentido, não socorre à União a alteração feita pela Lei nº 10.256/2001 na redação do art. 25 da Lei nº 8.212/91, uma vez que aquele diploma alterou apenas e tão-somente o caput do referido dispositivo. Como decorre da simples leitura, o caput não estabelece nada novo em relação à redação anterior, apenas esclarece que a contribuição sobre a comercialização se dá em substituição à cobrança sobre a folha de salários.

A base de cálculo – receita bruta proveniente da comercialização da produção – continua disciplinada exclusivamente pela Lei nº 9.528/97 e, portanto, mantém a inconstitucionalidade, haja vista esta lei ter sido publicada anteriormente ao advento da EC nº 20/98. Vejamos:

Art. 25. A contribuição do empregador rural pessoa física, em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22, e a do segurado especial, referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta Lei, destinada à Seguridade Social, é de: (Redação dada pela Lei nº 10.256, de 2001).
I - 2% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção; (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97).
II - 0,1% da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento das prestações por acidente do trabalho. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 10.12.97).


A decisão unânime proferida pelo STF no Recurso Extraordinário nº 363.852 reflete o acerto deste entendimento:

“O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário para desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por subrrogação sobre a ‘receita bruta proveniente da comercialização da produção rural’ de empregadores, pessoas naturais, fornecedores de bovinos para abate, declarando a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 8.540/92, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97, até que legislação nova, arrimada na Emenda Constitucional nº 20/98, venha a instituir a contribuição, tudo na forma do pedido inicial, invertidos os ônus da sucumbência. Em seguida, o Relator apresentou petição da União no sentido de modular os efeitos da decisão, que foi rejeitada por maioria, vencida a Senhora Ministra Ellen Gracie. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Celso de Mello e, neste julgamento, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa, com voto proferido na assentada anterior. Plenário, 03.02.2010.”

Conforme se extrai da leitura do texto acima, a Suprema Corte foi expressa em declarar a inconstitucionalidade dos incisos I e II do art. 25 da Lei nº 8.212/91, com a redação atualizada até a Lei nº 9.528/97. Ora, a atual redação dos referidos incisos I e II ainda é a conferida pela Lei nº 9.528/97, razão pela qual a inconstitucionalidade remanesce até hoje.

Por outro lado, a decisão, proferida em 03/02/2010, deixa claro que a inconstitucionalidade somente deixará de existir com a aprovação de uma “lei nova que venha a instituir a contribuição”, expressão que somente pode se referir a uma lei a ser editada em momento posterior a esta decisão. Destaca-se o uso do verbo “instituir”, no tempo do futuro do modo subjuntivo, ou seja, em um futuro eventual, hipotético.

Além disso, foi negada a modulação dos efeitos, especialmente pelo devido respeito ao direito dos demais contribuintes à repetição do indébito tributário, conforme se destaca na manifestação do Ministro César Peluso (às fls. 748-749 do voto). Restou vencida apenas a Ministra Ellen Gracie, cujos argumentos eram: impedir a propositura das ações de repetição e o fato dos produtores já terem absorvido o ônus deste tributo em suas atividades. Lembre-se que caso a Lei nº 10.256/2001 houvesse validado a cobrança da contribuição, não seria necessário considerar o problema das ações de repetição de indébito, face ao decurso do prazo prescricional.

E em que pese a decisão tenha sido proferida em sede de controle concreto de constitucionalidade, os ministros, com destaque para o Ministro Gilmar Mendes (fls. 757), ressaltaram a “tendência de objetivação do recurso extraordinário, especialmente agora nessa fase da repercussão geral”, uma vez que o STF passou a selecionar apenas casos que efetivamente tenham um efeito vinculante, seja efetivo ou virtual.

A inconstitucionalidade até o presente também é ratificada pelo fato do STF ter decidido “desobrigar os recorrentes da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por subrrogação”, o que não teria ocorrido caso a Lei nº 10.256/2001 houvesse legitimado a exigência da contribuição, desde o início de sua eficácia.

Lembramos que tramita atualmente no Supremo Tribunal Federal uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI 4395), na qual a Associação Brasileira de Frigoríficos (ABRAFRIGO) pleiteia a inconstitucionalidade do funrural mesmo após o advento da Lei nº 10.256/2001, ainda sem decisão. No entanto, o entendimento acima já têm sido adotado em algumas decisões proferidas pela Justiça Federal aqui em Ponta Grossa (veja a notícia publicada pela AASP), o que revela a plausibilidade da tese.

* Advogado sócio do escritório João Paulo Nascimento & Associados - Advogados e Consultores. Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário pela PUC-PR. Mestre em Direito Empresarial pelo Centro Universitário Curitiba. Professor titular de Direito Tributário do Cescage - Centro de Ensino Superior dos Campos Gerais. Professor de Direito Tributário da Escola da Magistratura do Paraná - Núcleo Ponta Grossa

Fonte: Blog "Tributo e Direito"

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