segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A Insconstitucionalidade do Item 1.05 da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003 (Lei do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza)

Douglas Aun Kryvcun e Carla Fava Altério*

1-) INTRODUÇÃO

O artigo 156, inciso III da Constituição Federal estabelece que os municípios estão autorizados a instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, excetuados aqueles do artigo 155, inciso II da Constituição Federal, tais quais: serviços de comunicações, bem como transportes intermunicipal e interestadual, a saber:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(...)
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
(...)
§3º Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:
I - fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;
II - excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior.
III – regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.”


Vale lembrar que o imposto a ser instituído tem como incidência a prestação de serviços exercida por pessoas físicas e/ou jurídicas, conforme dispõe o caput do artigo 7° da Lei Complementar 116/03 que estabelece como base de cálculo do ISS o preço do serviço, conforme disposto: “Art. 7º A base de cálculo do imposto é o preço do serviço. (...)”

Acontece que, pela leitura do item 1.05 da referida Lei, o “licenciamento ou cessão de uso de programas de computação”, não se caracteriza como um serviço, haja vista que licenciar e ceder não são serviços e sim obrigações oriundas de um contrato.

A cessão caracteriza-se por ser a transferência de bem ou direito a alguém, conforme definição do Dicionário Jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas:

“CESSÃO. S.f. (lat. cessio) Dir. Obr. Ato de transferir a outrem bens ou direitos. Alienação; transmissão.” (Dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 2ª edição.Editora Forense Universitária. 1991. Verbete Cessão. p. 96)

Já a prestação de serviços é, o que chamamos no direito, de obrigação de fazer, ou seja, celebra-se um contrato para que determinada pessoa faça algo para alguém. Trata-se de um contrato onde uma das partes se compromete a fazer algo para alguém devido a seu conhecimento e/ou habilidade técnica, lembrando-se a preciosa lição de Pontes de Miranda:

“O que promete obra deve o resultado. O que promete serviço, ou trabalho, deve a atividade mesma”.(Código Civil- Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. Editora LTr.2003. Coordenadores: Domingos Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. p.543.)

Assim, vale lembrar os ensinamentos da doutrina acerca da matéria:

“Cessão de uso de programa de computador. Licenciamento.“A lei complementar não pode tentar fazer incidir ISS sobre o que não seja obrigação de fazer...Desse modo, os municípios podem cobrar ISS sobre tudo o que seja obrigação de fazer, mas nunca sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programa de computador, ou meramente bem móvel”( Reis, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. RDDT 160/225, jan/09 IN: Paulsen, Leandro. Direito tributário- constituição e código tributário à luz da doutrina e jurisprudência. Livraria do Advogado Editora. 12ª edição. 2010. p.409. comentário ao artigo 156,III da Constituição Federal).

“Licenciamento de software. “Como a natureza jurídica do licenciamento de software é a de locação de bens móveis (...) e como locação de bens móveis (obrigação de dar) não é serviço (obrigação de fazer) segundo a citada jurisprudência do STF, logo, o licenciamento de software não é serviço, até porque a toda evidência não envolve nenhuma obrigação de fazer, apenas de dar uma cópia do programa, transmitida, seja por CD-ROM’s, seja via Internet”( Yamashita, Douglas.Licenciamento de software no Brasil: novas tendências tributárias. RDDT 141/62, jun/07 IN: Paulse, Leandro. Op. Cit. Idem. Ibidem)

Assim pode-se perceber que a prestação de serviço é uma atividade de alguém para outrem, já a cessão é a mudança de titularidade de algo, sendo este algo um bem ou direito. Logo, a lei complementar deveria regular a atividade e não a transferência de algum bem ou direito.

2-) INCONSTITUCIONALIDADE DO ITEM 1.05 DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR.

Para que seja tributada, a prestação de serviços deve ser onerosa, ou seja, deve haver um ajuste entre as partes, onde uma pagará um preço e a outra fará algo estabelecido previamente, entretanto, ao observar a lista depara-se com o item 1.05 que prescreve que incidirá ISS sobre o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, a saber:

“ Lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
1 – Serviços de informática e congêneres.
(...)
1.05 – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação.”


Assim, qualquer licença ou cessão de uso de programas de computação sendo um software gráfico, organizacional, sistema operacional ou até mesmos jogos eletrônicos, pois estes são programas, deve recolher o Imposto sobre Serviço.

É importante ressaltar que no passado o STF já afastou a incidência de ICMS dos softwares, mas não se manifestando sobre o ISS, uma vez que não foi objeto do Recurso Extraordinário, assim, é pertinente transcrever o voto do Ministro Sepúlveda Pertence quanto ao tema:

“EMENTA: I. Recurso extraordinário : prequestionamento mediante embargos de declaração (Súm. 356). A teor da Súmula 356, o que se reputa não prequestionado é o ponto indevidamente omitido pelo acórdão primitivo sobre o qual "não foram opostos embargos declaratórios". Mas se, opostos, o Tribunal a quo se recuse a suprir a omissão, por entendê-la inexistente, nada mais se pode exigir da parte (RE 210.638, Pertence, DJ 19.6.98). II. RE: questão constitucional: âmbito de incidência possível dos impostos previstos na Constituição: ICMS e mercadoria. Sendo a mercadoria o objeto material da norma de competência dos Estados para tributar-lhe a circulação, a controvérsia sobre se determinado bem constitui mercadoria é questão constitucional em que se pode fundar o recurso extraordinário. III. Programa de computador ("software"): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" " matéria exclusiva da lide ", efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.(RE 176626 / SP - SÃO PAULO. Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. Julgamento: 10/11/1998 Órgão Julgador: Primeira Turma. DJ 11-12-1998 PP-00010. Retirado do sítio do STF em 23/08/2010 às 08:52).

Claro que a decisão é antiga, datada de 1998, há mais de 10 (dez) anos, sendo que nesse lapso temporal houve muita mudança no setor tecnológico, pois ainda não era previsto o download do programa, pois, hoje em dia, muitas vezes não há nem mesmo uma mídia que o carregue, tais como, disquetes, CDs, DVDs e os programas que usam a própria rede mundial de computadores e alguns navegadores como base de operações, muitas vezes nem necessitando a instalação em uma máquina podendo ser acessado de qualquer parte do mundo.

Sobre a matéria aqui discutida já se manifestaram Ilustres Doutrinadores, entre eles Marcelo Caron Baptista, que em sua obra “ISS – doutrina e jurisprudência”, conforme trecho transcrito abaixo:

A relação de simples transferência de direitos sobre o programa não ensejam qualquer possibilidade de dúvida. Sobre elas não incide o tributo municipal, e sua presença na Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003 – item 1.05 – “Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação” – ostenta inconstitucionalidade incontornável.” (Baptista, Marcelo Caron, ISS do texto à norma (da EC nº 18/65 à LC nº 116/03), Quartier Latin p. 360, 2005).

Desta forma, nesses casos, em que nem mesmo ocorre a instalação, mas sim, a própria licença de uso de uma página, esta não pode ser tributada pelo ISS, uma vez que a cessão de uso ou de licença, conforme exposto acima é uma permissão de uso, uma faculdade do “proprietário” do software, resumindo, um aluguel, sendo que o próprio aluguel não incide ISS por não ser um serviço, mas uma obrigação contratual.

Assim, pelo o exposto, verifica-se que o item da lista é inconstitucional porque tributa o indevido, portanto, passível de ações no Judiciário para reconhecer que não há a incidência do imposto em análise, devendo-se, assim desonerar a atividade exercida pela pessoa.

3-) CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, verifica-se a possibilidade de questionamento, no Judiciário, da (in)constitucionalidade do item apontado na tabela da Lei Complementar 116/2003, bem como a desoneração da pessoa que cede o uso dos programas de computação, obtendo-se, assim, um provimento jurisdicional para que não se recolha mais o imposto pago indevidamente, uma vez que a atividade em questão é meramente uma permissão de uso ou, nas palavras da lei, uma cessão de uso ou licença.

Bibliografia:

Dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. 2ª edição.Editora Forense Universitária. 1991. Verbete Cessão. p. 96;
Código Civil-Estudos em homenagem ao Prof. Miguel Reale. Editora LTr.2003. Coordenadores: Domingos Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. p.543;
Reis, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. RDDT 160/225, jan/09 IN: Paulsen, Leandro. Direito tributário- constituição e código tributário à luz da doutrina e jurisprudência. Livraria do Advogado Editora. 12ª edição. 2010. p.409, comentário ao artigo 156,III da Constituição Federal;
Yamashita, Douglas.Licenciamento de software no Brasil: novas tendências tributárias. RDDT 141/62, jun/07 IN: Paulse, Leandro. Op. Cit. Idem. Ibidem;
Baptista, Marcelo Caron, ISS do texto à norma (da EC nº 18/65 à LC nº 116/03), Quartier Latin p. 360, 2005.

*Autor:
Douglas Aun Kryvcun e Carla Fava Altério

Douglas Aun Kryvcun
Advogado em São Paulo.
Pós Graduado em Direito Tributário pela EPD – Escola Paulista de Direito.

Carla Fava Altério
Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.

Ambos trabalham no escritório Rebouças Advogados.

Fonte: Revista Contábil & Empresarial Fiscolegis, 27 de Agosto de 2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Bom dia, Prof.

Na verdade a fonte é o sítio da Apet, Associação Paulista de Estudo Tributários, talvez haja uma reciprocidade entre a revista e a Associação. Mas fora isso, tudo bem.

Aliás, há outros artigos lá de minha autoria, convido-o a lê-los, bem como meu blog:

www.carnaleg.blogspot.com

Embora nele há uma análise sobre outros ramos, didaticamente divididos, do Direito.

Atenciosamente,

Douglas Aun Kryvcun